Para além da Michelin
A perfeição é uma prisão. Eu escolho a liberdade.
“Por que não vais em direção ao Michelin? Por que não queres chegar ao topo, onde se entregam as estrelas?”
A minha resposta é simples: porque não quero. Os pés bem assentes na terra trouxeram-me grandes projetos e desafios espetaculares. Mas… também fiz estágios em restaurantes Michelin. Sei como é esse mundo por dentro. Vivi a disciplina levada ao extremo, a precisão obsessiva, a pressão contínua. Vi como funciona uma cozinha onde não existe “quase bom”, mas apenas perfeição (tanto quanto um ser humano a pode compreender). E sim, a experiência molda-te. Fica-te no sangue o respeito pelo detalhe, pelo ritmo, pelos ingredientes, pelas técnicas. Mostra-te até onde podes ir, dá-te força e resistência. Mas também vi o preço: vida pessoal zero, relações sacrificadas, corpo levado ao limite, mente esticada ao máximo. Numa cozinha Michelin não existes “tu”. Existe apenas o restaurante, o padrão, a perfeição.
Alguns dirão: “mas mesmo nos restaurantes normais não tens vida – trabalhas imenso, ganhas pouco, sacrificas tudo.” Verdade. A cozinha, seja como for, exige um preço alto. A diferença é que lá, no Michelin, tudo é levado ao extremo. Num restaurante comum ainda existe pelo menos a possibilidade de um equilíbrio, um momento de respiro, uma gota de liberdade.
E aqui está, acredito eu, o desafio da nossa geração: demonstrar que a HORECA “normal” não precisa continuar presa ao preconceito de “escravidão moderna”. Podemos construir restaurantes onde as pessoas não vêm apenas trabalhar, mas crescer. Onde o serviço é uma escola de vida, não uma maratona de exaustão. Onde as equipas encontram no trabalho um sentido e também alegria, não apenas um salário no fim do mês que muitas vezes mal chega para sobreviver.
Como? Com passos concretos: programas pensados de forma mais inteligente, rotações que deixem espaço para a vida pessoal, menus adaptados aos recursos reais, escolas de gastronomia que ensinem também equilíbrio, não apenas disciplina. E, sobretudo, empregadores que entendam uma verdade simples: as pessoas dão mais quando são felizes e livres. Uma equipa respeitada traz valor. Uma equipa esgotada apenas resiste.
A mudança da perceção do público
Um dos maiores desafios não está apenas na cozinha, mas também fora dela: a forma como as pessoas olham para a HORECA. Demasiadas vezes fala-se de cozinheiros e empregados de mesa como de “escravos modernos”, condenados à ausência de vida pessoal, horários intermináveis e baixos salários. Essa imagem criou raízes, e muitos fogem desta profissão fascinante por causa do preconceito.
Mas a hospitalidade não tem de ser assim. Podem encontrar-se soluções reais para que as equipas trabalhem de forma mais inteligente, e não apenas mais. Rotações, serviços mais curtos, menus concebidos com respeito pelos recursos e pelas pessoas. Além disso, os clientes têm um papel enorme: compreender que por trás do seu prato existe uma cadeia inteira de trabalho, esforço e paixão. O respeito pela hospitalidade começa com a educação do público, com o reconhecimento do valor desta profissão. Se mudarmos a mentalidade, podemos mudar também a realidade. Se os restaurantes escolherem investir no bem-estar das equipas, e os clientes aceitarem que um preço justo reflete o trabalho envolvido, então esta profissão recupera a sua dignidade. Cozinheiros e empregados podem ser vistos não como mão de obra barata e descartável, mas como artistas, profissionais e criadores de experiências. No dia em que a hospitalidade for percebida como uma profissão respeitada, moderna e com futuro, e não apenas como um trabalho pesado e sem vida, poderemos voltar a atrair talentos, paixões e novas energias. A cozinha exige muito, mas também pode dar imenso – quando é construída sobre respeito e visão.
Volto à minha estrela…
Não quero caçar estrelas Michelin. Não quero subir a um pódio que não me pertence. A minha cozinha não é sobre perfeição, é sobre verdade. Sobre vida. Sobre mim.
A minha estrela está noutro lugar: no sorriso de um cliente, no silêncio depois de um serviço caótico, no café da tarde, na mensagem que me espera cheia de motivação e amor da pessoa certa (que tantas vezes eu própria negligencio), no prato que conta uma história e deixa uma memória.
A minha estrela é a liberdade de ser eu.