A discriminação não usa uniforme

Sou chef de cozinha. E sou mulher. Isso significa mais do que parece.

Quando se diz “chef”, muitos ainda imaginam uma silhueta alta, tatuada, suada, com voz grave e tom áspero. Mas a verdade é que as cozinhas do mundo começam, devagar, a ganhar outra voz. Uma que vem da força, do equilíbrio, da sensibilidade e de um instinto tão antigo quanto a própria humanidade: o instinto de nutrir – não só o estômago, mas também a alma.
Sou chef de cozinha. E sou mulher. E isso não é apenas um detalhe – é uma história em si.

Atrás do cheiro de manteiga queimada e do grito “ENTRA”, existe uma outra realidade: a de uma mulher, estrangeira, tentando conquistar um espaço num mundo que muitas vezes não quer que ela esteja ali.“O ferro de que é feita uma mulher-chef num país estrangeiro”, não é um texto sobre glória. Não é sobre pratos perfeitos, nem sobre aplausos.
É sobre peso. Sobre esforço. Sobre tudo aquilo que não se vê. Já me disseram que sou “direta demais”, “diferente demais”. Num mundo que ainda acredita que uma grande cozinha é território masculino, eu cheguei com as mãos vazias e a alma cheia. Não com músculos, mas com resistência. Não com volume, mas com visão. Essa profissão é difícil para qualquer um. Mas para uma mulher estrangeira, o peso vem em camadas. Uma camada para cada olhar que te exige o dobro para te acreditar pela metade. Uma camada para cada colega que te subestima – até que aprenda, em silêncio, o que é sabor de verdade. Uma camada para cada saudade que precisa ser cozida também, até virar força.

Houve dias em que saí da cozinha tremendo. Não de frio. Mas de cansaço, de raiva, de impotência. Porque, numa equipa, é preciso lutar não só pela comida, mas também por respeito. Por uma voz. Não escrevo isso por pena. Nem por drama.
Escrevo porque me perguntam muito: “Como é ser uma mulher-chef num outro país?” E eu prometi que responderia com sinceridade.

É difícil. De uma maneira que não se vê no prato. É difícil de um jeito que te transforma – e se não estiveres atenta, transformas-te até não te reconhecer mais. E, mesmo assim… fico. Permaneço. Cozinho. Porque no fogo, aprendi quem sou. Porque amo o que faço.

A beleza virá. Mas hoje, falo do peso. Daquele silêncio pesado que se instala sobre as vozes das que trabalham o dobro para serem ouvidas pela metade. É sobre mim. Mas não só. É sobre cada mulher que vive entre dois mundos, com as mãos cheias e a voz redonda de verdade. É sobre o momento em que entendes que o fogo ao teu redor é menor que o fogo dentro de ti. Escrevo porque em cada cozinha deste mundo existe uma mulher que se cala demais. Uma estrangeira que morde a língua e faz um empratamento perfeito, enquanto sua alma treme de raiva. Quero que elas saibam que é possível. Que no silêncio delas há uma força que, um dia, vai virar comando.

O que me trouxe beleza, o que floresceu em mim, o que me fez crescer – virá noutro texto. Hoje, honro a luta. Hoje, falo em nome daquelas que não dizem nada, mas carregam sacos, acendem o fogo, mantêm a equipa unida e depois desaparecem em silêncio, apagando a luz no caminho para o descanso – prontas, ainda assim, para um “amanhã”.

Essa profissão esmaga. Mas daquilo que se esmaga pode nascer aço. E eu sou aço. Moldada pelo fogo – não pela sorte.

Não é fácil ser mulher numa cozinha profissional. Não é fácil ser estrangeira. Mas o que não se diz é o quanto dói ser ambas – ao mesmo tempo. Existe uma forma de solidão que não tem a ver com a ausência de pessoas. É a solidão de saber que, antes de seres ouvida, tens que provar que existes.

Sou chef. Não porque sonhei isso em criança. Mas porque a vida me escolheu assim. Não, não sou um acidente. Sou mulher-chef numa profissão feita de egos masculinos, onde a sensibilidade é vista como fraqueza e a intuição como suspeita. Sou mulher estrangeira, numa língua que me moldou com resistência, não com doçura. Cada dia na cozinha é uma forma de testar limites. Não apenas físicos – mas internos. Quantos silêncios consegues engolir sem te perderes? Quantos olhares ignorantes podes transformar em respeito silencioso? Quanto podes dar sem pedir nada em troca?

Aprendi que não é preciso gritar todos os dias para liderar. Que às vezes, a força está na presença. Em como se enfrenta uma crise. Em como se transforma o caos em ritmo. Em como se respeita o ingrediente, o colega, o silêncio. Mas ninguém fala do preço. Do cansaço que não passa mesmo depois de dormir. Da saudade que se instala entre dois pedidos.
Da forma como precisas reconstruir tua dignidade todos os dias, do zero. A cozinha não é glamour. É batalha, ritmo, resistência. É um lugar onde aprendes a fazer oito coisas ao mesmo tempo e ainda assim prestar atenção aos detalhes.
Onde não podes ser “emocional”, mas precisas sentir – o sabor, as pessoas e o tempo. Como mulher, lidero a cozinha não pelo medo, mas pela conexão. Estimulo o ritmo, não o pânico. O silêncio eficiente e o diálogo. O respeito mútuo, não a dominação. A minha liderança não é sobre quem grita mais alto – é sobre quem está mais presente, SIM PRESENTE.

Agora vem a resposta à pergunta: “Uma ladychef tem uma liderança fraca?” A liderança feminina não é mais fraca – é mais inteligente. As chefs-mulheres têm uma memória sensorial única. Temos outra relação com o sabor. Com o cheiro. Com a intuição. Sabemos fazer de uma sobra uma história, de um dia duro – um prato quente. Não é magia. É experiência vivida com atenção. Os especialistas e os pesquisadores sabem disso.

E não tens medo de trazer a sensibilidade para dentro da cozinha como mulher?”
Não deixo minha sensibilidade em lugar nenhum. Não tenho medo dela – transformo-a em refinamento.

O que significa, afinal, ser chef e mulher? Saber quando salgar e quando calar. Ser mulher, namorada, esposa, irmã, amiga, líder, estratega, nutricionista e psicóloga – tudo ao mesmo tempo. Não perder a feminilidade num ambiente duro – mas transformá-la numa assinatura culinária. Ser respeitada não por ser mulher, mas por ser boa. Ponto.

A cozinha – lugar onde não só as frigideiras fervem, mas também os preconceitos. Sou mulher. Sou chef. E não peço permissão a ninguém por isso.

Fui tratada como “a rapariga boa para tudo, muito trabalhadora”, antes de me permitirem “crescer”. Testaram os meus nervos, mas não me deram confiança total durante tempo suficiente. Fui perguntada incontáveis vezes: “De onde és?” – não por curiosidade genuína, mas para estabelecer, subtilmente, quão baixa devia ser a estima que eu merecia. Por ser mulher chef, fui subestimada. Por ser estrangeira, fui vista como ameaça. Por ser ambas, tornei-me… um risco. Para alguns.

Mas não caí. Levantei-me.

O racismo nem sempre tem máscara. Está no olhar que te mede quando falas. No sorriso falso ao pronunciares uma palavra com sotaque. Na ironia do colega que diz: “aqui fazemos diferente”. O racismo é doméstico, bem disfarçado em conveniências. Não te dá murros – mas sim desconfiança e marginalização.

E mesmo assim, continuei. O que não me matou, ensinou-me a queimar de outra forma. Queimei como a frigideira esquecida no fogo – mas não me colei. Queimei – e renasci com cada serviço bem feito, com cada cliente satisfeito,
com cada estagiário, cozinheiro ou colega que me disse “obrigado, chef”. Com cada sorriso de um/a patrão/patroa orgulhoso/a de tudo o que fiz naquele dia pela casa. Com cada mensagem de quem provou os meus pratos e sentiu vontade de agradecer – por uma memória, por um sabor que os levou no tempo, por um casamento único cheio de “mim” ao mais alto nível. Tudo isso tem valor inestimável para mim – e o dinheiro não pode pagar. Conquistei respeito sem pedi-lo, apenas trabalhando o dobro. Porque sim, como mulher estrangeira, tens que ser duas vezes melhor para receber apenas metade do mérito.

Para terminar…

Sou mulher. Sou estrangeira num país estrangeiro que amo e respeito mais do que muitos nacionalistas. Sou chef.
E estou aqui para queimar estereótipos. Aprendi com os erros, com os dias infinitos, com os nós na garganta, as frustrações, as noites longas, os insultos e repreensões, com os pratos devolvidos, os tons errados, os olhares mais pesados que palavras, com o meu silêncio a gritar por justiça – mas acima de tudo, aprendi a respeitar os clientes que sempre confiaram em mim, na cozinha, na equipa e em mim própria.

E se me dissessem há alguns anos que eu conseguiria? Teria rido com amargura. Hoje, rio com plenitude.

Não nasci do privilégio, mas da luta. Não subi escadas de ouro – subi pelas palmas queimadas. E tudo o que me tornei – tornei-me com as minhas próprias mãos, a minha mente, o meu coracao e o meu bolso, com o peito aberto ao mundo, com a alma destemida diante do julgamento.

Sou mulher. Sou estrangeira. Sou chef. Não sou um rótulo. Não sou exceção. Sou uma força silenciosa, nascida da margem e criada no centro. Onde outros veem obstáculo, eu vejo caminho. Onde outros desistem, eu respiro mais fundo. Onde o fogo arde – eu não fujo. Eu crio.

Isto não é uma história de sucesso. É um testemunho de sobrevivência. De dignidade. De renascimento diário. Porque em cada serviço, em cada prato, em cada dia em que escolhi não desistir – tornei-me a prova de que o impossível tem gosto de mulher.

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